segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A História


O ENGENHO DE SANTANA

O início do nosso Engenho de Santana data de junho de 1547, com a doação de duas sesmarias e dois contratos de aforamento das águas, aos fidalgos portugueses Mem de Sá e Francisco Betamcort; a doação partiu do Capitão Donatário Jorge de Figueiredo Correa. Os documentos garantiam a posse e a obrigação de construir dois engenhos, além do pagamento de foro anual. Betamcort fica com a sesmaria e águas acima do Rio de contas; já Mem de Sá demarca sua sesmaria na beira do Rio Santana, local da construção do engenho. ( MARCIS, p. 281, 2013)
Com a morte de Mem de Sá em 1572, constava em seu inventário um grande patrimônio, aqui no Brasil ele possuía dois engenhos de grande porte, O engenho Sergipe, localizado no recôncavo e o de Santana em ilhéus. Sobre o engenho de Santana:

“ Uma casa de engenho com todos os seus apetrechos, quatro barcos, quatro carros, artilharia, armas leves e munições, um baluarte, 41 tarefas de canaviais e uma igreja. A mão de obra escrava era composta por 132 escravos – sendo sete negros de Guiné (seis homens e uma mulher), e 125 índios, chamados “ negros da terra”. Todos os escravos foram arrolados entre os demais bens deixados para os herdeiros. Tudo somado foi avaliado em 3.130 cruzados. O valor era bastante alto” (MARCIS, p.282, 2013)  
De acordo com o testamento, Mem de Sá deixava seus bens para os seus dois filhos; Francisco de Sá e Felipa de Sá. Francisco vem a falecer oito meses depois da morte do pai, deixando para a irmã incumbência de administrar o engenho. Felipa conduz o engenho por 46 anos, junto com seu marido o conde de Linhares, Fernando de Noronha. Com a sua morte e a de seu marido, e como o casal não teve filhos, os bens do casal no Brasil e em Portugal foram doados para o Colégio Jesuíta de Santo Antão de Lisboa. Neste período o engenho foi administrado pelos jesuítas, até sua expulsão pelo Marquês de Pombal, em setembro de 1759. Os bens confiscados pela coroa, são descritos da seguinte forma.
“Casa de residência [...] com paredes de pedra e tijolo, quatro dormitórios e varanda [...].
Uma capela pequena de pedra e cal com seu alpendre e torre de cima. Com as paredes indo em bom uso, com as madeiras de telhado e coro também em bom uso [...], o retábulo do altar que está muito velho, e antigo.
Uma casa de engenho com forno do lado de fora;
Uma casa de caldeiras e casa de purgar pegada e uma outra de pedra e cal;
Uma casa de peso e ferreiro tudo de pedra e cal ainda com bom uso;
Uma casa de olaria formada [...] cheios de madeira, coberta de telha com dez braças e três palmos de comprido e com duas braças e oito palmos de largo.
Um forno de coser louça, telha e tijolo [...]” (ARQUIVO ULTRAMARINO, CAIXA 14, MAÇO 4927, DOC. 4947-4948 apud MARCIS, 2013, p.285)
É interessante observar como o engenho é descrito; um sistema de produção complexo e grandioso na produção de açúcar. Segundo a documentação, ele se caracterizava como um engenho real, ou seja, movido a energia hidráulica e de grandes dimensões. 

O maior número de trabalhadores no engenho era destinado à produção de cana de açúcar e a jornada de trabalho ocupava praticamente todo o ano. Demorava cerca de dois meses para plantação e nove meses a colheita. Para não parar a produção do engenho, era feito o sistema de rodizio; enquanto um canavial estava sendo plantado, outro já estava na fase da colheita. Esse método era importante, pois demorava cerca de 12 a 14 meses para o ponto de corte da cana.
No engenho de Santana as plantações eram feitas em áreas nem sempre apropriadas para o plantio, isso tornava o trabalho ainda mais árduo para os escravos. Além disso, picadas de cobras, insetos e o difícil acesso a regiões de canavial, como por exemplo no “Jabiru”, região de manguezais, onde os escravos deveriam atravessar para chegar em uma das áreas cultiváveis do engenho.
Dentre as estruturas do engenho, estava a casa de moer ou casa de engenho, onde se localizava a a moenda; segundo Antonil, o lugar mais perigoso do engenho.
“se por desgraça a escrava que mete a cana entre os eixos, ou por força do sono, ou por cansada, ou por qualquer outro descuido, meteu desatentadamente a mão mais adiante do que devia, arrisca-se a passar moída entre os eixos, se não lhe cortarem logo a mão ou o braço apanhado, tendo para isso junto da moenda um facão, ou não forem tão ligeiros para fazer parar a moenda, divertindo com o pejador a água que fere os cubos da roda, de sorte que dêem depressa a quem padece, de algum modo, o remédio. E este perigo é ainda maior no tempo da noite, em que se mói igualmente como de dia, posto que se revezem as que metem a cana por suas equiparações, particularmente se as que andam nesta ocupação forem boçais ou costumadas a se emborracharem.  (ANTONIL, p.47)
Caso parecido acontece no engenho de Santana, Segundo Schwartz (2001), uma escrava de nome Marcelina, perdeu um dos braços na moenda. Mesmo perdendo um dos membros, a escrava continuou sendo escalada para o trabalho, agora na função de jogar água nas engrenagens da moenda para diminuir o atrito dos tambores de madeira que esmagavam a cana.
Os relatórios dos padres administradores, nos fornecem valiosas informações sobre a administração jesuítica no engenho. Em 1753, o padre Pedro Teixeira informa que o número de escravos era de 182, e que muitos viviam doentes e inaptos para o trabalho no canavial, ele informa também que, no período de 1731 até 1752, nasceram 24 crianças e morreram 23 escravos. Além desses dados, ele nos fornece os preços de alguns escravos comprados no período.
“Pretos comprei [...]
Joana de Rosi no Bco por – 80$00
Jacintha Ramos em praça no Rio das Contas por – 100$00
Felipe Ribeyro [...] de Coelho  por – 100$000
José Monteyro ao Cel. Moteyro por 105$000
Dos que recebi no Eng. Vendi um chamado Apollinário de Figueiredo à procuração de Domingos Alfonso Cortes [...] por 160$000” (ARQUIVO ULTRAMARINO, CAIXA 14, MAÇO 4927, DOC. 4947-4948 apud MARCIS, 2013, p.289)
Os escravos foram fundamentais na região sul da Bahia, desde a lavouras de cana de açúcar até a implantação da cacauicultura no XIX. No Engenho de Santana, além da produção de cana de açúcar os escravos eram relacionados como, pedreiros, carpinteiros, calafeiteiros e caldeiros; porém, o maior contingente era destinado aos canaviais e produção de açúcar.
Com a saída dos jesuítas, os bens foram confiscados pela coroa Portuguesa e levados a leilão. “ o engenho foi então arrematado por Manuel da Silva Ferreira que, em 1810, o repassou ao Brigadeiro Felisberto Caldeira Brant, o Marquês de Barbacena. Em 1834, o Marquês negociou as terras do engenho com Sá Bittencourt e Câmara que manteve a passe até sua morte, em 1896” (MARCIS, p.284). Após esse período a sesmaria onde localizava o engenho foi dividida entre seus herdeiros.
          


O Perfil Africano


O AFRICANO E O CONTEXTO DA ESCRAVIDÃO NO ENGENHO DE SANTANA

Alguns pontos do Sistema Escravista aplicado no Brasil colonial precisam ser elucidados, para que se entenda a dinâmica da escravidão no Engenho de Santana. A escravidão já era praticada desde a Antiguidade, porém, com certas peculiaridades: apresentava-se como resultado de guerras ou de dívidas; como por exemplo, um escravo poderia ser um homem livre, vencido em uma batalha, ou aquele que não tinha condições de pagar sua dividas, sendo assim, escravizado até que o valor fosse pago. De modo igual como na Antiguidade, essa prática sempre existiu na África, principalmente como resultado de guerras tribais. Estas guerras tribais também eram comuns no continente americano, como dito anteriormente, os índios da Capitania de Ilhéus também tinham esse caráter bélico.

            A escravidão transformada como base de um sistema de produção, e como peça chave de um comércio extremamente lucrativo dentro da época moderna, é uma construção europeia. É a introdução de um comércio transatlântico, com escravos capturados exclusivamente da África. A cor da pele torna-se o fator principal de diferenciação social. Matta salienta, que a escravidão de povos africanos também tem suas raízes na reconquista da península ibérica contra o Islã.
Os descobrimentos portugueses tinham também um caráter de continuação da reconquista contra o Islã, assim como de fortalecimento do cristianismo contra os tradicionais rivais maometanos. A escravidão usou, ao menos a princípio, o argumento da Guerra Santa. Os primeiros escravos eram na maioria capturados entre os negros islâmicos do Magreb e da região sudanesa. Os negros da Guiné, do Senegal, da Mauritânia. O tráfico, novidade da escravidão moderna, que transformava o processo de captura e escravidão em sistemático processo de comercialização infame, expandiu o processo todo, e a própria navegação portuguesa que entrou em contato com muitas Áfricas. (MATTA, 2013, p.22)
            Os portugueses conheciam as heterogeneidades étnico culturais africanas e, para afirmação de um novo modelo de escravidão, era necessário afirmar a diferença dentro da diversidade. O escravo passa a ser um produto valorizado dentro do continente Africano, a ponto de os próprios africanos organizarem expedições tribais para capturar escravos e vender aos europeus.
            Durante os séculos XVI e XIX, os habitantes da África não se viam necessariamente como “negros”, muitos deles se viam como grupos diferenciados e até inimigos entre si. O termo “negro” é uma construção da população branca em relação ao o outro. A construção do vocábulo aconteceu com a supressão de várias identidades étnicas locais dentro do continente africano. Até mesmo a noção de África como território homogêneo é uma construção advinda da Europa. Identidades e diferenças construídas para servirem de base ao sistema escravista que estava em andamento. Estas diferenças se fazem presentes na própria composição da senzala do Engenho de Santana.
“ Por ora, registremos que a desconstrução da diversidade de etnias negras e das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro de uma grande raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamente homogêneo -  e a simultânea visão desta parte da humanidade como “inferior”, ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano como lugar exterior à “civilização” – tudo isso, juntamente com uma nova noção de “ escravo” constitui o fundo ideológico da montagem do sistema escravista no Brasil.” (BARROS, 2014, p.48)
            Essa construção do negro nos moldes da escravidão moderna passava pela afirmação e desconstrução de certas identidades africanas, como por exemplo, a construção de identidades tribais com o intuito de rivalizar e incentivar guerras; obtendo mais escravos. Os portugueses adotam uma tática parecida no combate a índios rebelados no Brasil, como no caso da Batalha dos Nadadores, onde tribos indígenas insurgentes são reprimidas pelos portugueses com a ajuda de tribos rivais.

            Quando enviado para o trabalho nas colônias, havia uma separação estratégica de escravos de mesmo grupo étnico cultural, ou com laços afetivos, misturando escravos; com o intuito de evitar que as identidades locais africanas fossem revividas no cativeiro e, consequentemente, evitando possíveis revoltas.
            A descaracterização dos elementos culturais africanos e a homogeneização da ideia de negro, era a peça chave no processo. Há um deslocamento da ideia de escravidão, saindo do eixo da desigualdade cultural, para a diferença racial. Muitas comunidades tribais africanas foram igualadas, no imaginário ocidental, com o único aspecto que tinham em comum: a cor da pele.

“o negro no Brasil e no resto da américa passou a ser visto como uma realidade única e monolítica, e, com o tempo, foi levado a enxergar a si mesmo também desta maneira. Perdidos os antigos padrões de identidade que existiam na africa, o negro afro-brasileiro sentiu-se compelido a iniciar a aventura de construir para si uma nova identidade cultural, adaptando-a a própria cultura colonial. Com isso iram surgir novos padrões religiosos, diversidades alternativas sincréticas, uma nova arte e uma nova música, e tantas outras contribuições que já não são propriamente africanas” (BARROS, 2014, p.48)
            A estratégia de separar negros por etnia ou grupos linguísticos, é um recurso de separação por diferenças, para que o negro não se reconheça no outro. Essas heterogeneidades, mesmo existentes em lutas anteriores, é explorada estrategicamente pelos europeus, evitando o surgimento de comunicação e ajuda mútua entre os escravizados. A ideia é provocar uma perda de identidade étnica. Esta separação fica evidente no Engenho de Santana, onde durante a revolta de 1789, escravos nascidos no Brasil (crioulos), propõem os trabalhos mais pesados para os escravos recém-chegados da África (pretos minas).
            A língua já não mais representa seus valores de origem, mas suas qualificações para o trabalho; os negros passam a ser identificados segundo seus portos de origem: Cabinda, Quelimares, Minas, Benguelas, Benins. As relações de parentesco e organizações tribais são rompidas, evocando os lugares de partida para construção de mão de obra escravizada.

No Engenho de Santana as origens dos escravos em sua maioria era crioula ou seja, escravos nascidos no Brasil. Os escravos africanos que aqui chegaram em menor número eram de origem da Guiné e Costa da Mina. Sobre essa situação atípica, onde o maior numero de escravos eram nascidos no Brasil, Schwartz revela:

“Na década de 1790, restavam poucos indivíduos nascidos na Africa entre os escravos, mas em 1828, os 222 escravos de Santana eram, com exceção de uma mulher idosa, todos nascidos no Brasil. Essa situação extraordinária era bem diferente da que ocorria na maioria dos engenhos baianos, onde predominavam africanos. Ademais, ao contrário da maioria dos engenhos de açúcar, o índice de sexos estava bem equilibrado, com 109 homens e 113 mulheres.” (SCHWARTZ, 2001, p.111)
            Os escravos nascidos no Brasil tinham certos privilégios em relação aos escravos recém chegados da África. Como já conheciam o território e a língua, os crioulos sabiam explorar melhor as possíveis brechas dentro do sistema em que estavam inseridos. Muitas vezes, em situações conflituosas, ficavam do lado de seus senhores, contra os escravos recém-vindos.
            Essa rivalidade entre os cativos poderia ser muito vantajosa para os senhores, já que, assim, estes estariam constantemente em guerras e não se uniriam contra a casa grande. Outra forma de minar a união e solidariedade na formação de uma comunidade escrava era a promoção de alguns escravos para certos cargos de comando dentro da senzala; criando assim uma hierarquia social e gerando mais conflitos.
            Durante os séculos de escravidão, várias táticas foram utilizadas pelos senhores para maior controle dos cativos, como a permissão para cultivo de suas próprias roças. Frequentemente era destinado um dia da semana para que o escravo, cultivasse seu próprio alimento. Essa era uma das poucas oportunidades de os escravos adquirirem bens que não possuíssem, ou juntar dinheiro para possivelmente comprar sua liberdade. Essa estratégia não era uma regra geral, já que muitos senhores consideravam perigoso esse excesso de liberdade para com os cativos. Outros observavam com vantagem, uma vez que o escravo produzindo seu alimento, não haveria necessidade de alimentá-lo; ademais, essa liberdade dava maior permanência do escravo no engenho, facilitando assim o seu controle por parte do senhor. Além disso, ter sua própria roça motivava os escravos a trabalharem mais e em tempo hábil, já que poderiam trabalhar nela quando tivessem terminado o trabalho nas terras de seu senhor. Sobre a produção em suas próprias roças, no Engenho de Santana os escravos produziam seus próprios alimentos, podendo até mesmo vender o excedente para seus senhores.

“Um administrador reclamou em 1748 que seu antecessor havia parado de plantar mandioca porque os escravos quase sempre roubavam na roça, mas que a farinha de mandioca era necessária “ para os enfermos e para fornecer aos negros que estão sempre necessitados” e porque “ há um mercado para ela na Bahia”. Na década de 1750, o próprio engenho comprava o excesso de mandioca dos escravos por um preço inferior ao preço de mercado.” (SCHWARTZ, 2001, p.111)
            Vários são os incentivos por parte dos senhores para que houvesse uma maior produtividade nos engenhos. Os incentivos iam desde um pouco de cachaça, em alguns dias da semana; ou até mesmo, pagamentos com parte da produção, onde os cativos poderiam vender seus produtos.
            A possibilidade de uma mobilidade social, também motivava os escravos a trabalharem mais e a serem disciplinados. Escravos em posições administrativas ou semi-administrativas criavam uma imagem de uma possível ascensão social dentro das senzalas, a possibilidade de alcançar tais posições, gerava uma esperança e aumentava a produtividade daqueles.
“Haveria mais dissensão e enfraquecimento dos laços de solidariedade entre os escravos do que coesão, com muitos deles distanciando-se de seus pares, por meio de estratégias emprestadas pelos costumes brancos e com interesse na mobilidade social. Como consequência, os escravos que ganhassem certos recursos não reconheceriam os demais como parceiros. Não haveria, portanto, uma comunidade escrava, já que um grande nível de conflito entre eles seria a regra, e hierarquias sociais se formariam dentro das senzalas, com alguns ocupando posições mais proeminentes do que outros” (FARIA, 2006, p.126)
Estas características ficam evidentes na composição étnica e cultural grande centro econômico da capitania de Ilhéus foi o engenho de Santana. Neste engenho o trabalho era dividido de acordo com a origem dos escravizados: africana, crioula ou mulata. Além disso, as funções eram de escravo de lavoura, de enxada, de roça e serra. Escravos domésticos recebiam um melhor tratamento e certos privilégios em relação a outros escravos.

O Perfil Indígena


PERFIL INDÍGENA NA CAPITANIA DE ILHÉUS

            Traçando um perfil étnico das tribos indígenas que aqui habitavam, é possível afirmar, de acordo com estudos arqueológicos, que os grupos de origem Tupi, da família Tupinambá tem sua origem na região norte, onde se deslocaram para o litoral, e a partir disso, desalojando outros grupos já existentes, provavelmente de ascendência Jê. (MAESTRI, 1995).
No grande território da capitania de Ilhéus, que correspondia a barra do rio Jaguaripe, ao sul da ilha de Itaparica até o rio Jequitinhonha no sul do atual estado da Bahia. Neste território as populações indígenas tiveram uma grande importância no processo colonizador, e muitos dos seus elementos culturais e econômicos influenciaram portugueses e africanos. Segundo Marcelo Henrique Dias, o papel indígena foi fundamental na construção dessa nova sociedade.

“ As populações indígenas [...] constituíram-se, ao longo do período colonial, num importante contingente populacional e na principal força de trabalho voltada para atividades como extração e a condução de madeiras de lei, a extração e o beneficiamento de fibras vegetais utilizadas na construção naval (embiras), o artesanato de contas de rosário, redes de pesca e de dormir (giróis) etc.” (DIAS, 2016, p.187)
Alguns destes elementos estarão presentes na configuração do nosso museu virtual do Engenho de Santana. Será fundamental entender as heranças culturais indígenas e como isso está presente em todo período colonial no Brasil.
            Seguindo relatos de cronistas do século XVI, Florestan Fernandes descreve as aldeias tupinambás como subdivididas em unidades, chamadas de malocas. Estas habitações estavam divididas em forma de centro, com uma grande área no meio, onde aconteciam as festas e rituais da tribo, a exemplo da antropofagia. Durante a chegada dos portugueses havia uma média de 650 à 850 índios por maloca; (FERNANDES, p. 58-64). A alimentação se dava através de mandioca, cultivada em suas próprias roças, com a utilização técnica da coivara (derrubada e queima de uma determinada área para o cultivo) procedimento ainda praticado por índios em algumas regiões do Brasil. Tanto a alimentação com mandioca quanto a técnica da coivara, foram utilizadas por portugueses e africanos no Engenho de Santana, a farinha por exemplo, era a base principal da alimentação. Sobre essa prática e a alimentação a base de mandioca, Hans Staden descreve:
“Quando querem plantar derrubam as árvores do lugar que para isso escolheram e deixam-nas secar por cêrca de três meses. Então lhes deitam fogo e queimam-nas. Depois fincam as mudas da planta de raízes que usam como pão entre as cepas das árvores". (A mandioca) "é um arbusto de uma braça de altura e que cria três raízes. Quando querem prepará-las, arrancam os arbustos, destacam-lhes as raízes e enterram de nôvo pedaços das hastes. Estas pegam e desenvolvem-se tanto em seis meses que podem ser utilizadas. Preparam a mandioca de três modos: Primeiro, moendo as raízes, expremendo a massa e torrando-a num alguidar. Segundo, deixando as raízes de môlho e secando a massa, no fumeiro. Terceiro, misturando raízes desfeitas em água com farinha e torrando tudo" (HANS STADEN, p.15)
            Outra característica marcante das tribos Tupinambás, era a antropofagia. Ritual de guerra que envolvia a captura e a morte do inimigo e a sua ingestão para perpetuação dos saberes e da memória do grupo. Muitos cronistas e padres jesuítas consideravam o ritual como grande expressão de vingança e ódio em relação ao inimigo. Para Viveiros de Castro, a antropofagia não era somente a vingança e a sua incapacidade de perdoar ou esquecer dos Tupinambás, ela era a produção da memória e a sua perpetuação no corpo social do grupo. (CASTRO, 1992). É interessante observar a antropofagia como a multiplicidade da cultura indígena e as constantes rivalidades tribais. Assim como os africanos, os índios da américa, guerreavam entre si, e isso expressava sua falta de homogeneidade e originalidade dentro do corpo social. Os nativos indígenas e os africanos que aqui chegaram expressão suas rivalidades e diferenças. Sobre estes, fica evidente na Revolta Escrava do Engenho de Santana (1789), a diferença entre negros vindos da África (pretos minas) e os nascidos no Brasil (crioulos).
            No ritual antropofágico, após ser capturado, o inimigo era introduzido no cotidiano dos Tupinambás, eram lhe oferecidos todas as condições para sua socialização, podendo até mesmo casar e ter filhos, tornando assim membro da tribo. Porém, o recém chegado não deveria perder a consciência de sua execução. O objetivo era cria uma cumplicidade na relação, pois para um Tupinambá, o inimigo ideal era outro Tupinambá.
Levado ao terreiro, pintado e decorado, preso pela mussurana, o cativo esperava seu carrasco que, portando um diadema rubro e o manto de penas de íbes vermelha, aproximava-se de sua presa, imitando uma ave de rapina. Recebia a maça, a ibirapema, das mãos de um velho matador, e então tinha início o famoso diálogo ritual com a vítima. (Fausto 1992: 391/392)
            Com ares teatrais o ritual tinha falas e encenação entre o inimigo e o guerreiro tupinambá. “Não sabes tú que tú e os teus mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar estas mortes. Nós te materemos, assaremos e comeremos!”. O inimigo respondia [...] “– Pouco me importa, tú me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se me comerdes, fará apenas o que já fiz eu mesmo. Quantas vezes me enchi com a carne de tua nação! Ademais, tenho irmãos e primos que me vingarão.”
            O ritual de guerra e sua perpetuação como memória no grupo, está relacionado também com a masculinidade tupinambá, já que o guerreiro só poderia casar-se após ter matado um inimigo. Essa festa representava um rito de passagem no qual o jovem tupinambá torna-se adulto e passa desempenhar outras funções dentro da tribo.
            Os índios de origem Tupi, chamavam Ilhéus de Nhoesembé; não se sabe precisamente o real significado desse termo, segundo Barbosa, acreditasse que possa significar “a fusão da exuberância tropical de suas matas com as ondas revoltas do mar, que cobririam as praias com suas espumas prateadas” (BARBOSA, p.45). Os tupi que habitavam o litoral, eram principalmente das tribos tupiniquins; já os índios do interior eram de origem Tapuia ou Jê, em Ilhéus sobretudo os Aimorés.
Estas tribos foram fundamentais para o processo de implantação dos engenhos de açúcar no início da colonização. Em inventário do patrimônio de Mem de Sá, de 1572; o Engenho de Santana contava com 132 escravos, sendo 125 indígenas e 7 negros vindo da Guiné. (FILHO, 2000, p.24)
Os Aimorés eram índios nômades, dormiam nos troncos das arvores e não praticavam a agricultura. Grandes caçadores e conhecedor das matas, usavam bem os instrumentos de arco e flecha. Os Aimorés guerreavam constantemente com portugueses e tribos rivais; principalmente os Tupiniquins do litoral. Estes eram considerados mais pacíficos, praticavam a agricultura e vivam da caça e da pesca, foram bons aliados dos portugueses no início da colonização da capitania.
 “Enquanto os tupiniquim construíram casas de taipa, cobertas de palha e viviam da pesca, da caça e do cultivo da terra, os Aimorés dormiam sob as árvores e não cultivavam a terra, fazendo frequentes incursões ao litoral para conseguir pescados, o que originava luta entre as duas nações” (VINHÁES, p.37)
            A intensificação da exploração da mão de obra indígena, diante do crescimento dos empreendimentos desenvolvidos pelos portugueses, dá início a uma série de resistência por partes dos nativos, muitos deles se recusando ao trabalho forçado, destruindo plantações e fugindo para o interior das matas. Neste período a produção de açúcar nos engenhos de ilhéus ficaram comprometidas e o número de engenhos foi reduzido de oito em 1570, para três em 1583 (DIAS, 2007, p.64). Sobre esse caráter bélico de resistência e luta indígena na colonização veremos a batalha dos nadadores.
            Em 1559, ocorre uma revolta dos índios Tupiniquim; famosa Batalha dos Nadadores. A história se desenrola com o fato de um índio ter sido morto e seu assassino ter ficado impune, lava os indígenas a vingarem matando dois brancos na estrada de Ilhéus para Porto Seguro, além de destruir uma roça, amedrontando assim a população local. Segundo Silva Campos, essa reação indígena, encorajou outros índios a reagirem contra os colonos da vila. Os revoltosos queimaram outras fazendas e em seguida cercaram a sede da capitania. “De tal jeito, que ficaram reduzidos os moradores a se alimentar, exclusivamente, de laranjas dos seus quintais” (CAMPOS, p.82).
            Diante do caos instaurado, muitos colonos recorreram a um pedido de ajuda ao Governador Geral do Brasil, Mem de Sá, em Salvador. Este, levando o pedido junto a um conselho de guerra, ficou acertado que haveria um envio de ajuda para Ilhéus. ” Levou consigo Mem de Sá um intrépido capitão, afeito às guerras brasílicas, Vasco Rodrigues Caldas, que foi seu braço direito na campanha, e muitos índios das aldeias da Bahia” (CAMPOS, p.82); a contra gosto de parte da população de Salvador, estes temiam que com a saída do governador geral, os índios circunvizinhos poderiam ataca-los. É interessante observar como os portugueses se aproveitavam das diferenças étnico culturais das tribos indígenas para facilitar a repressão a índios rebelados; esta tática foi também utilizada no continente africano, no processo de captura de negros para serem escravizados nas colônias.
            Ao desembarcar em Ilhéus com os índios da Bahia, Mem de Sá foi recebido por moradores assustados com os constantes ataques indígenas. “que se mais tardara oito dias, dizem que os achara comidos dos índios, e si tiveram embarcações todos houveram já despovoado” (NOBREGA, p. 214). Logo após a chegada é organizada uma expedição com apoio de moradores da vila para combater os índios rebeldes.
            O grande massacre indígena acontece na praia do Cururupe (mar de sangue), que recebe esse nome em razão da grande batalha. Cercados pelas tropas do Capitão Vasco Rodrigues Caldas, homem afeito a guerras contra os nativos, os índios revoltosos se lançaram ao mar; porém foram alcançados pelos índios das aldeias da Bahia, nadadores exímios, aliados de Mem de Sá. A luta se desenrola a cerca de uma légua da costa; já cansados, muitos tupiniquins foram mortos por afogamento. “mataram lá alguns e outros trouxeram malferidos, que na praia acabaram de matar” (NOBREGA, p.215). Segundo Mem de Sá em carta enviada ao rei de Portugal em 31 de março de 1560, os corpos dos índios mortos enfileirados na praia, somados faziam uma légua.
 ‘Neste tempo veio recado ao governador como o gentio topenequin da Capitania dos Ilhéus se alevantara e tinha mortos muitos cristãos e distroidos e queimados todos os engenhos dasuquares e os moradores estavão serquados e não comião jaa senão laranjas e logo o puz em conselho e posto que muitos erão que não fosse por não ter poder para lhes resistir nem o poder do imperador fui com pouca gente que me seguiu e na noite que entrei nos Ilhéus fui a pé dar em uma aldeia que estava sete leguas da vila em um alto pequeno toda cercada d’água ao redor d’alagoas e as passamos com muito trabalho e ante manhã duas horas dei n’aldeia e a destroi e matei todos os que quiseram resistir e a vinda vim queimando e destroindo todas as aldeias que ficaram atraz e por se o gentio ajuntar e me vir seguindo ao longo da praia lhe fiz algumas ciladas onde os cerquei e lhes foi forçado deitarem-se a nado mar costa brava mandei outros indios traz êles e gente solta que os seguiram perto de duas léguas e lá no mar pelejaram de maneira que nenhum topenequim ficou vivo, e todos os trouxeram a terra e os pozeram ao longo da praia por ordem que tomavam os corpos perto de uma légua fiz outras muitas saidas em que destroi muitas aldeias fortes e pelejei com êles outras vezes em que foram muitos mortos e feridos e já não ousavam estar senão pelos montes e brenhas onde matavam os cães e galos e constrangidos da necessidade vieram a pedir misericordia e lhes dei pazes com condição que haviam de ser vassalos de sua alteza e pagar tributo e tornar a fazer os engenhos tudo acceitaram e fizeram e ficou a terra pacifica em espaço de trinta dias onde fui a minha custa dando mesada a toda a pessoa honrada e tão bem digo e tão boa como é notório’” (CAMPOS, 2001, p.84-85).
            Com o fim da batalha, os índios sobreviventes foram condenados a pagar os prejuízos causados aos colonos, alguns outros fugiram do litoral para o interior. Posteriormente como estratégia de tornar os índios mais dóceis e facilitar a colonização os padres da Companhia de Jesus iniciam a catequização dos indígenas e a formação dos aldeamentos. Dentro desse contexto, temos a chegada dos escravizados africanos na Capitania de Ilhéus.
Este breve histórico com algumas características indígenas, será importante dentro da construção do engenho, já que muitos dos elementos indígenas estarão presentes dentro de todo processo colonizador.

O Perfil Português


PERFIL PORTUGUÊS NA COLONIZAÇÃO DO BRASIL

Os portugueses que aqui chegaram para o processo de colonização, traziam consigo suas leis, cultura e religião. Por mais que nas colônias, entrassem em contato com outras culturas, elementos de suas origens eram mantidos ou resinificados durante a colonização. Mesmo com algumas alterações ou mudanças comportamentais, o modo de vida português e suas práticas cotidianas, são evidentes no início da ocupação das novas terras. Essas características estarão presentes em todo o contexto social, econômico e cultural do nosso Engenho de Santana na Capitania de Ilhéus.
Alguns autores apontam uma certa originalidade da cultura portuguesa, em relação a outros países europeus. Em razão da sua localização geográfica privilegiada na Península Ibérica, os portugueses tiveram uma relação muito próxima com outras civilizações, além das europeias. Em trabalho sobre a História da Bahia e traçando um perfil dos primeiros colonizadores que aqui chegaram, Alfredo Matta aponta que as principais cidades Portuguesas e Espanholas, tiveram suas origens em antigas civilizações africanas. Segundo o autor, foram mais de 1000 anos de dominação dos africanos, até que por volta de 200 a.C., com a vitória dos Romanos nas Guerras Púnicas, a península ibérica passasse por um processo de transformações profundas.

Foram 800 a 700 anos de hegemonia Romana que resultaram na profunda latinização da região. A vitória Romana se deu sobre os africanos. Isso significou, desde aquele momento, que os Romanos passaram a utilizar o argumento da cor da pele como elemento de distinção entre a nova e a velha hegemonia. Dos romanos, além da língua, de diversos hábitos alimentares, festas, religião, dentre as quais o cristianismo, a península herdou suas principais instituições: a estrutura urbana, a ideia de câmara e de prefeito, a cidadania, a representação por voto, as municipalidades. É impressionante como até hoje as estruturas organizacionais e instituições do Brasil são tão romanas. Isso por herança portuguesa. (MATTA, 2013, p.20)
Com o fim do império romano, em consequência das invasões dos povos germânicos, ocorreram outras incursões na península ibérica, desta vez dos africanos islâmicos, que dominaram a região por quase 8 séculos, até serem expulsos pelos cristãos no século XV. Estes fatos, são importantes para se compreender que as Grandes Navegações que culminaram no achamento do Brasil, estão inseridas no contexto de tomada da península ibérica por parte dos cristãos desde o século VIII. Essas disputas formaram uma cultura riquíssima para Portugal e Espanha.
Estas disputas territoriais, e as constantes batalhas pela expulsão dos mouros na península ibérica, formaram em Portugal uma classe de grandes guerreiros cristãos; já que em razão do conflito, precisava constantemente aprimorar técnicas de guerra e navegação, para defesa de seu território. Essa cultura belicosa foi fundamental durante as conquistas coloniais, principalmente aqui no Brasil. O português chega bélico e estabelece esta tradição guerreira de milhares de anos na região de Ilhéus. Além disso, pela característica da península, fica evidenciado que a cultura ibérica está participe da interação cultural, há muito tempo.
 Segundo Sergio Buarque de Hollanda, os portugueses davam muita importância ao indivíduo em sua originalidade e autonomia, como se este, não dependesse de ninguém, “ cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes” (HOLANDA, 2007, p.32), uma ideia de superação e desafio. Estas características partilhadas pelos Ibéricos na época moderna, foram fundamentais para as aventuras ultramarinas, incluindo a nossa região sul da Bahia. O historiador Antônio Manuel Hespanha, aponta algumas outras características dessa sociedade.
                                                                                                             
Já veremos, na verdade, que os portugueses não eram apenas isso; que eram também (e sobretudo) católicos, que eram (muito menos) europeus, que eram hispânicos; que eram, depois, minhotos ou beirões; vassalos do rei ou de um senhor; eclesiásticos, nobres ou plebeus; homens ou mulheres. E que, sendo tudo isto, sem deixarem de ser portugueses, eram portugueses de uma maneira muito menos nítida e unidimensional do que o hoje supomos, à luz dos paradigmas de distinção nacional (agora, em português) estabelecidos desde o século passado (SILVA e HESPANHA, 1993, p. 19).
A nobreza portuguesa dos séculos XVI e XVII era entendida como uma virtude familiar, transferível por laços de sangue ou por fama adquirida no exercício de algumas atividades sociais. Mesmo com as transformações sociais ocorridas no contexto do Renascimento e da Reforma Religiosa, e a possibilidade de ascensão social por parte de classes sociais mais baixas; essa dinâmica social esbarrava na tradição corporativista de uma nobreza familiar. Entende-se por família portuguesa no período, como pessoas que vivem sob a mesma casa, estabelecendo uma noção de hierarquia e autoridade, que transcende conexões genealógicas. Porém essa relação se fortalece quando se trata de pais e seus filhos, para os portugueses os filhos seriam uma continuação dos pais. Estas características e experiências vividas serão trazidas pelos lusitanos no início da colonização, tanto na doação das capitanias hereditárias, quanto na doação de sesmarias.
Os primeiros portugueses que chegaram para iniciar o processo de colonização no Brasil, buscavam enriquecimento fácil e o viver de nobreza europeu. Isso ficava evidente na noção de riqueza com a posse da terra, e os lucros que dela poderia se obter. Tanto que as primeiras medidas tomadas por Mem de Sá quando recebe as sesmarias na capitania de Ilhéus, é erguer engenhos de cana de açúcar, um deles o Engenho de Santana. O senhor de engenho seria a principal alternativa para o enriquecimento nos trópicos.

O ser Senhor de Engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino. Porque engenhos há na Bahia que dão ao senhor quatro mil pães de açúcar e outros poucos menos, com cana obrigada à moenda, cujo rendimento logra o engenho ao menos a metade, como de qualquer outra, que nele livremente se mói; e em algumas partes, ainda mais que a metade (ANTONIL, 1997, p. 75).
A divisão do Brasil em Capitanias Hereditárias e suas doações para pessoas de grande cabedal social e financeiro de Portugal deveria ser a via de regra para o processo colonizador. A Carta de Doação da capitania de Ilhéus data de 26 de junho de 1534, assinada em Évora pelo Rei de Portugal, D. João III a Jorge de Figueiredo Correia, escrivão da Fazenda Real, além de grande comerciante, e um dos homens mais ricos de Portugal. De acordo com a Carta de Doação:

“... cinquenta léguas de terra da dita Costa do Brasil e que começaram na ponta da Bahia de Todos os Santos da banda do sul, e correrão ao longo da costa dito Sul quando couber nas cinquenta léguas se estenderão, e será de largo ao longo da costa, e entrarão, na mesma largura pelo sertão, e terra firme adentro quanto poder entrar, e for de minha conquista, com todas as ilhas, que houver até dez léguas ao mar da fronteira digo na fronteira e demarcação das cinquenta léguas...” ( Carta de Doação – Anexo 1, p.2)
            Entre os direitos e deveres dos donatários estavam; garantir a doação da capitania, fundar vilas com até seis léguas entre si, exercer poderes judiciários, aplicando pena de morte em determinados casos, defender as terras contra possíveis ataques estrangeiros. Era reservado a coroa o direito de 20% dos recursos naturais retirados do território.
            O Donatário da capitania, Jorge de Figueiredo Correa, homem de muito prestígio social na corte lusitana, não abandona seu alto cargo a fim de se aventurar em terras pouco conhecidas. Diante disso, envia como Loco Tenente, o castelhano Francisco Romero, um homem bravo e considerado e considerado grande guerreiro, para dar início a colonização nas terras de Ilhéus.
            A sede da capitania seria estabelecida na Ilha de Tinharé, porém topógrafos da armada de Francisco Romero, encontram um local de melhor defesas naturais, com solo bastante fértil e localizada no centro da orla marítima da capitania, “num promontório formado pelo mar e por um rio navegável, apresentando pelagoso e abrigado fundeadouro, vigiados os dois pontais de sua barra por sendos morros” (CAMPOS, P.35);  assim a vila iniciada em Morro de São Paulo é abandonada e se inicia uma nova sede da capitania, a vila de São Jorge dos Ilhéus, em homenagem ao santo católico e ao donatário da capitania; as primeiras povoações se estabelecem no morro de  São Sebastião, no atual bairro do Outeiro
“ Bahia que se chamou dos ilhéus, tanto pela sua amplitude, como pela circustancia de estar de situada em paragem mais central da capitania, e ainda pela excelência de terras que se encontravam naquela parte do continente, ofereceu condições que não podiam comparar com aquela estreiteza de Tinharé” (Rocha Pombo, III, p.245)
            Logo estabelecido o local da capitania, Francisco Romero tratou da construção de fortificações com o intuito de evitar possíveis ataques indígenas; porém, segundo o cronista Silva Campos, logo após vencida a resistência indígena dos primeiros anos, houve uma boa relação com a população tupiniquim, sendo estes de inestimável ajuda na construção de casas, abertura de estradas e construção de engenhos. O naturalista português Baltasar da Silva Lisboa salienta que “ao invés de procurarem viver bem com aqueles, só quiseram dominá-los e cativá-los. Maltratavam-nos, apossavam-se de suas mulheres e de suas provisões” (CAMPOS, p. 38). Evidenciando assim, que essa aparente paz e animosidade se dava através de violência e desrespeito a populações locais.
            Em Portugal, o donatário tentava se articular com pessoas de grande poder aquisitivo, doando grandes sesmarias, para que assim conseguisse desenvolver a capitania. Para tanto, Jorge de Figueiredo doou uma sesmarias a Mem de Sá, futuro Governador Geral do Brasil. Nesta sesmaria que iria se desenvolver um grande engenho de açúcar, o Engenho de Santana, localizado às margens da ribeira de Santana.
            Os investimentos iniciais surtiram grande efeito no desenvolvimento da capitania, grandes fazendas se estabeleceram, atraindo uma gama de aventureiros. Segundo Barbosa, parafraseando Tomé de Souza, primeiro Governador Geral do Brasil, “A vila de São Jorge a ser a mais próspera e rica de todo o Brasil, a ponto de Tomé de Souza assim se expressar em carta dirigida a D. João II: “é a melhor coisa desta costa para fazendas e que mais rende agora para si Alteza”. (BARBOSA, p.32); Com a morte de Jorge de Figueiredo Corrêa, a capitania é passada ao seu filho, Jerônimo Alarcão, este consegue licença para vender a capitania, a Lucas Giraldes, grande banqueiro e mercador português, nesse período a Capitania chegou a ter oito engenhos de cana de açúcar. (BARROS, p.50)
            A administração dura de Francisco Romero, gerou grande mal estar com os colonos, a ponto de estes se organizarem, prendendo e expulsando o Loco Tenente para Portugal. Porém, contrariando a decisão dos colonos, o donatário Jorge de Figueiredo Corrêa, restabeleceu o cargo a Romero. Consequentemente os conflitos internos se intensificaram e muitos colonos abandonaram Ilhéus em direção a Pernambuco e São Vicente. Essa instabilidade administrativa facilitou que índios se revoltassem e resistissem a escravidão que lhes era imposta. 
Essa relação de caráter aparentemente pacifico no início da colonização, vem a se alterar quando os elementos de dominação portuguesa se intensificam, gerando um descontentamento dos índios tupiniquins. As constantes violações dos territórios indígenas e a impossibilidade de cultivarem suas próprias plantações; a imposição do trabalho escravo, fatores que desrespeitavam as relações indígenas, já que muitos prisioneiros de guerra eram destinados a rituais antropofágicos. Além disso, os portugueses não respeitavam as alianças e rivalidades tribais, tratando a cultura indígena como homogênea. Sobre essa relação Baltazar da Silva Lisboa, Ouvidor da Comarca afirma:
“a ambição dos povoadores, junto com a tirania com que atacaram os índios, excitou tanto ódio destes contra os portugueses, que em lugar de tirarem as vantagens que o país, a ignorância e a singeleza dos índios lhes podia administrar, se viram vexados e perdidos por muitas corridas que os índios de contínuo lhes faziam, destruindo as suas lavouras e habitações, pondo-os no último risco de vida.” (LISBOA, 1799 apud MOTT, p. 8)

A Revolta Escrava de 1789


A REVOLTA ESCRAVA NO ENGENHO DE SANTANA 1789

            No final do século XVIII, ocorre uma revolta escrava no Engenho de Santana, nela são evidenciadas algumas características da escravidão, e o grau de diferenciação entre os próprios escravos.
Os Escravos escrevem um tratado de paz que é apresentado ao proprietário do engenho de Santana, como negociação para voltarem aos afazeres. Essa paralização, parou o engenho, e os escravos fugiram para quilombos próximos a ilhéus. No tratado, são apontados pontos que demonstram a capacidade de negociação os escravos, diante das adversidades de uma sociedade escravista. 

            Em 1789, um grupo de escravos matou o feitor e fugiu sob a liderança de Gregório Luís (mestiço de mulato e negro), provocando a paralização do engenho por dois anos. Até serem atacados por uma expedição militar, solicitada pelo dono do engenho, o Provedor da Casa da Moeda da Bahia, Manuel da Silva Ferreira. Diante disso, os escravos escreveram uma carta – um tratado de paz - objetivando uma negociação e a volta ao trabalho.  Segue abaixo o documento escrito pelos escravos.
“Meu Senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu Senhor também quiser a nossa paz há de de ser nesta conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos a saber:
Em cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e de sábado para trabalharmos para nós não tirando um destes dias por causa do dia santo.
Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas.
 Não nos há de obrigar a fazer camboas, nem amariscar, e quando quiser fazer camboas e mariscar mande os seus pretos Minas.
Para o seu sustento tenha lancha de pescaria e canoas do alto e quando quiser comer mariscos mande os seus pretos Minas.
 Faça uma barca grande para quando for para a Bahia nós metermos as nossas cargas para não pagarmos fretes.
Na planta de mandioca, os homens queremos que só tenham tarefa de duas mãos e meia e as mulheres de duas mãos.
 A tarefa de farinha há de ser de cinco alqueires rasos, pondo arrancadores bastantes para estes servirem de pendurarem os tapetes.
 A tarefa de cana há-de ser de cinco mãos, e não de seis, e a das canas em cada feixe.
 No barco há-de pôr quatro varas, um para o leme, e um no leme puxa muito por nós.
 A madeira que se serrar com serra de mão em baixo hão de serrar três, e um em cima.
 A medida de lenha há-de ser como aqui se praticava, para cada medida um cortador, e uma mulher para carregadeira.
 Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação.
 Nas moendas há de pôr quatro madeiras e duas guindas e uma na carcanha.
Em cada uma caldeira há de haver botador de fogo, e em cada terno de taixas o mesmo, e no dia de sábado há de haver peja no Engenho.
Os marinheiros que andam de lancha além camisa de bata que se lhes dá, hão de deter Gibão de bata, e todo o vestuário necessário.
O canavial de Jaribu o iremos aproveitar por esta vez, e depois há-de ficar para pasto porque não podemos andar tirando canas para entre mangues.
 Poderemos plantar nosso arroz onde quisermos e em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou outro qualquer pau sem darmos parte para isso.
A estar por todos os artigos acima, e concedermos estar sempre de posse da ferramenta, estamos prontos para servirmos como dantes, porque não queremos seguir os maus costumes dos mais Engenhos.
Podemos brincar, folgar, e cantar todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença”. (REIS, SILVA, 1989, p.123,124)
O tratado elucida vários pontos acerca da vida dos escravos nas senzalas. As reivindicações vão, desde condições materiais de vida, da busca pelo lazer ao direito de professar sua própria crença religiosa. Procuravam limitar atividades que consideram desagradáveis, destinando-as a outros escravos. No tratado não há menção a castigos físicos, evidenciando-se, assim, a diferenciação entre crioulos e africanos. 
Os escravos de Santana pretendiam jogar a maior carga de trabalho para os “pretos minas”, escravos recém chegados da África; já que eram os crioulos, escravos nascidos no brasil, que estavam organizando a revolta. A língua e a convivência com os senhores, colocavam os crioulos numa posição de melhor controle em relação aos recém chegados. É importante perceber como havia na negociação vários fatores de diferenciação entre os escravos.
O tratado chama atenção para a existência de conflitos e divergências entre os escravos crioulos e africanos, os “pretos minas”. [...] os escravos não formavam uma comunidade única pela condição de escravidão, e no Santana, os crioulos, como eram chamados os escravos nascidos no Brasil, sempre foram maioria em relação aos africanos. Eram eles que formaram, portanto, a maioria dos rebelados que redigiram o Tratado de paz. Entretanto, nas diversas experiências de resistência ao regime de escravidão, as divergências étnicas não foram os principais impedimentos. (MARCIS, 2012. p.306)
Dentre as reivindicações, estava o número de escravos para o serviço de moer a cana. Segundo Antonil, o número mínimo era de mão de obra para o serviço era de sete ou oito de escravos.
“As escravas de que necessita a moenda, são sete ou oito, a saber: três para trazer cana, uma para a meter, outra para passar o bagaço, outra para consertar e acender as candeias, que na moenda são cinco, e para limpar o cocho do caldo (a quem chamam cocheira ou calumbá) e os aguilhões da moenda e refresca -los com água para que não ardam, servindo-se para isso do parol da água, que tem debaixo do rodete, tomada da que cai do aguilhão, como também para lavar a cana enlodada, e outra, finalmente, para botar fora o bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E, se for necessário botá-lo em parte mais adiante, não bastará uma só escrava, mas haverá mister outra que a ajude, porque, de outra sorte, não se daria vazão a tempo, e ficaria embaraçada a moenda. ” (ANTONIL, 1982, p.47)
As reivindicações do tratado demonstram pontos em comum sobre os funcionamentos de engenho do brasil colonial.  Os escravos do Engenho de Santana sabiam da necessidade de alternar os turnos nas funções dentro do engenho. Além disso, pediam folga nos fins de semana, já que os proprietários do engenho adotavam o trabalho em dois turnos e sete dias por semana.
Depois de extraído o caldo, o mesmo era levado para as caldeiras. Segundo Marcis, existiam em Santana, cerca de quatro caldeiras de ferro e quatro tachas de cobre. Esse trabalho era fiscalizado pelo “ mestre-de-açúcar”, como era uma atividade que exigia certa especialização, muitas vezes se recorria a trabalhadores livres ou escravos crioulos. Sobre esse trabalho no engenho, a autora nos informa.
“Ele fiscalizava a fervura nas caldeiras e purificava o caldo, colocando cinzas e mandando retirar a espuma que se formava. Algumas mãos a mais de cinza ou se a espuma não fosse retirada, por descuido ou boicote, todo o conteúdo da caldeira ficaria arruinado.[...] Depois de pronto, era ainda batido e então colocado em recipientes de barro ou formas. As formas, feitas de argila em forma de sino com um pequeno furo na parte inferior, eram produzidas na olaria do Santana.”  (MARCIS, 2013, p.303)
Após esse processo, eram transferidas para a casa de purgar, onde ficavam em processo de purgação por uma média de 30 dias. No final, a forma era quebrada e as pedras de açúcar eram separadas pela qualidade e brancura.
Além dos trabalhos destinados a produção de cana de açúcar, o documento revela muitas atividades extras, que desagradavam os escravos. “ Das 14 reividicações feitas, sete são relativas a essas atividades complementares ou paralelas, destinadas principalmente a prover o sustento dos administradores” (MARCIS, 2013, p.305), Atividades como pesca e mariscagem eram consideradas perigosas ou humilhantes, e os escravos rebelados sugerem que sejam destinados aos escravos de origem africana, “ os pretos minas”.
Os instrumentos usados para a pesca eram a tarrafa e uma armadilha chamada de gamboa ou camboa, instrumento esse indígena e adotado pelos escravos do engenho. A técnica consistia em um aproveitamento dos movimentos de maré, fazendo-se um cercado durante a maré baixa, e que durante a subida e vazão da maré, facilitava a captura dos peixes e mariscos ali represados. No documento os escravos reivindicam a propriedade dos instrumentos de pesca e que o trabalho deveria ser feito em horários pré-determinados; as posses dessas ferramentas lhes dariam uma vantagem em possíveis negociações.  
No engenho de Santana, os escravos tinham a possibilidade de cultivo em suas próprias roças. Trabalhavam nas horas de descanso, em suas plantações. Segundo (SCHWARTZ, 1998), os escravos podiam vender seus produtos, até mesmo ao senhor do engenho, este comprava por um terço do valor. Essa possibilidade de os escravos terem suas próprias roças, era resultado de uma negociação com o senhor; pois com isso aumentava a produtividade, controlava os custos com alimentação e fixava melhor o escravo na senzala. Essa negociação é expressa nos termos “ sem que para isso lhe peçamos licença [..] sem que precise dar conta”
Diante disso, os senhores perceberam que a melhor forma de aproveitar o trabalho dos escravizados era através de castigos e recompensas; dentro dessa dualidade estes encontraram a oportunidade de melhorar sua condição de vida e trabalho.

“Os proprietários, não todos, em seus cálculos para a extração da mais-valia, também perceberam que poderia ser mais lucrativo oferecer incentivos, sem dispensar o chicote. E são esses incentivos que os escravos do Santana souberam aproveitar para seguir vivendo. Os incentivos mais comumente utilizados, além dos presentes, como medalhas, santinhos, roupas novas e peixes no período da Páscoa, abrangiam a possibilidade de formar famílias através do matrimônio e a permissão para cultivar suas roças de alimentos nas terras do engenho. ” (MARCIS, 2013, p.310)
Conforme o documento, pediam as sextas feiras livres para se dedicaram a seus próprios trabalhos, com o direito de plantar arroz e cortar madeira, além de solicitar ao dono do engenho um barco para levar sua produção a Salvador, sem pagar taxa de envio. Podemos comparar essas reivindicações com as negociações trabalhistas modernas que, dentro do sistema escravista foram extremamente revolucionárias.
“Esses últimos, apesar de serem lucrativos aos proprietários, eram considerados arriscados, pois implicava permitir que os escravos ficassem longe dos olhos vigilantes do feitor durante parte do tempo em que estivessem em suas roças, além do perigo maior representado pela posse das ferramentas. No tratado, reivindicaram a posse das ferramentas, confirmando a importância dessa condição para garantir certa autonomia em relação ao controle do proprietário. ” (MARCIS, 2013, p.310)
Se por um lado os senhores poderiam até mesmo lucrar com tais “ incentivos”, os escravos souberam utilizar essas lacunas em forma de reivindicações nos espaços de autonomia e liberdade, longe da fiscalização dos senhores. 
Em 1791, Manuel Silva finge aceitar as reivindicações dos escravos e promete alforriar seu líder Gregório Luís, porém, quando os escravos voltam ao trabalho, são presos e seus líderes vendidos para outras capitanias.

“Parece que a base de sua resistência não estava nas solidariedades etinicas africanas, mas, pelo contrario, nos objetivos comuns, nas objeções especificas aos que administravam o latifúndio pelos proprietários ausentes, e em sua insatisfação com determinados aspectos do regime de trabalho.” (SCHWARTZ, 2001, p.111)
O documento demonstra o papel dos cativos como agentes históricos e atuantes dentro do processo da escravidão. Capazes de fazer reivindicações e exercer pressão dentro do sistema escravista, mesmo não representando um corpo homogêneo dentro dessa lógica. Os escravos traziam consigo toda sua história anterior ao cativeiro, sua língua, religião, além das rivalidades africanas - que não se apagavam em função do cativeiro.